- O Projeto
O Projeto FomeS
INTRODUÇÃO
O projeto “Indicadores de mudanças climáticas, de insegurança alimentar e fome no Brasil e seus impactos na saúde e nutrição infantil” – FomeS – financiado pelo Ministério da Saúde e CNPq (CNPQ/DECIT/SECTICS/MS No18/2023), propõe avaliar o impacto das mudanças climáticas na condição de insegurança alimentar (IA) dos domicílios brasileiros e suas repercussões nas condições de saúde, alimentação e nutrição de crianças menores de 5 anos. De nosso conhecimento, o projeto FomeS é a primeira iniciativa brasileira para integração de bases de dados centrada no debate dos determinantes climáticos da fome e da IA, avaliada a partir da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), e suas relações com saúde e nutrição infantil, sendo este seu caráter inovador.
OBJETIVO
Construir uma base integrada de dados nacionais incluindo indicadores de mudanças climáticas, IA e fome, insegurança hídrica, saúde e estado nutricional de crianças, considerando o contexto brasileiro de desigualdades sociodemográficas, gênero e raça/cor, e assim viabilizar o monitoramento integrado desses problemas ambientais e sociais complexos.
Revisão de Literatura
Mudanças climáticas se referem a quaisquer mudanças no clima de ordem natural ao longo dos anos, ou em resposta à atividade humana, sendo caracterizada pelo conjunto de alterações (do clima) que incluem: aumento da temperatura da superfície global, alterações de precipitação, umidade, vento e a maior ocorrência de eventos climáticos extremos (secas, inundações e ondas de calor extremo). Associadas às altas temperaturas estão as precipitações mais extremas, e a mudança na biodiversidade, levando ao empobrecimento do solo e ao aumento da escassez de água, impactando diretamente a produção de alimentos, bem como sua qualidade nutricional, acarretando, portanto, na menor oferta de alimentos e consequentemente no aumento dos seus preços (IPCC, 2007; Kotz et al, 2024; Martins et al, 2023; Agostoni et al, 2021; IPCC, 2018; Myers et al, 2017).
Eventos climáticos extremos são uma realidade no Brasil. Os dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET, 2024) revelam um cenário impactante no sistema alimentar, o qual sofre diretamente os efeitos das fortes chuvas e tempestades e o agravamento das secas sobre a quantidade, a qualidade e o acesso aos alimentos, de modo que os desfechos desta relação interferem incidentemente no aumento dos graus de insegurança alimentar, que historicamente trazem a marca das desigualdades sociais no país. No Brasil a IA é mensurada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) e se refere, especificamente, à falta de acesso aos alimentos, tendo a renda domiciliar como um dos seus principais determinantes (Lignani et al, 2020).
Atualmente, a IA moderada ou grave atinge mais de 7 milhões de domicílios brasileiros, o que equivale a 9,4% dos domicílios particulares, sendo os mais vulneráveis à escassez de alimentos justamente aqueles com a presença de crianças, e/ou chefiados por mulheres, responsáveis da família da cor preta ou parda, indígenas, quilombolas, pertencentes às regiões Norte e Nordeste, entre outros (IBGE, 2024; Santos et al, 2023; Luz et al, 2023; Cherol et al, 2021; Lignani et al, 2020; Morais et al, 2020;UNICEF, 2022).
As crianças e adolescentes configuram o grupo mais vulnerável aos desfechos da mudança climática devido à singularidade de seu metabolismo e à sua imaturidade fisiológica, conferindo pouca eficiência na adaptação climática, além de serem mais suscetíveis às infecções (virais e bacterianas) decorrentes dos eventos climáticos extremos como a poluição do ar, da água e dos contaminantes dos alimentos. Além da fisiologia, a saúde dos menores também está relacionada aos índices de IA da população. Este indicador representa um dos fatores determinantes para o cenário de má nutrição na infância (obesidade, desnutrição e deficiência de micronutrientes) no Brasil, pois afeta a disponibilidade de alimentos saudáveis à população vulnerável e essa condição é ainda mais agravada pelas mudanças climáticas, impactando no crescimento e desenvolvimento infantil (Niles et al, 2021; UNICEF, 2022; Shively, 2017).
Deste modo, a dinâmica em que os eventos extremos atingem os diferentes grupos sociais no Brasil é bem diversa. Baseado na dispersão de IA do país, é possível inferir que determinadas populações sofrem de maneira desproporcional na ocorrência destes eventos, e as populações mais vulneráveis, consequentemente expostas aos maiores impactos da mudança climática, são as crianças e adolescentes (com ou sem deficiência;), especialmente meninas, negros, indígenas, quilombolas, e pertencentes a outros povos e comunidades tradicionais, migrantes e/ou refugiados.
Considerações metodológicas
O projeto FomeS está sendo elaborado em cinco grandes etapas, a saber: (1) Elaboração de um modelo teórico para orientar a pré-seleção de indicadores; (2) Construção das plataformas FomeS; (3) Avaliação dos indicadores pré-selecionados por especialistas; (4) Coleta dos dados públicos em bases nacionais e construção da base de dados; (5) Elaboração do Dashboard FomeS com os resultados selecionados para cada dimensão.
As plataformas FomeS foram criadas com os recursos Google Sheets como base de armazenamento de dados do inventário, o AppSheet como o aplicativo de interface de entrada de dados pelo usuário e o Looker Studio como ferramenta de relatórios gerenciais para acompanhar a evolução e tomada de decisões. Foi criado ainda um banco de dados no BigQuery para armazenamento dos dados dos indicadores avaliados para o Dashboard FomeS.
A pré-seleção dos indicadores foi guiada pelo modelo teórico elaborado pelos pesquisadores após ampla revisão de literatura e validação do modelo. Objetivou-se nesta etapa a busca dos indicadores validados e utilizados em estudos científicos, de modo que se chegou à definição de seis dimensões de interesse para as quais estão distribuídos os indicadores pré-selecionados e cadastrados na plataforma “inventário de indicadores”. Entre as estratégias de busca, destacam-se a seleção em artigos revisados por pares, estudos, pesquisas, relatórios, inquéritos de base populacional (Censos), repositórios de registro contínuo (sistemas de informação) e plataformas, considerando a presença dos indicadores em bases de dados secundárias públicas nacionais. Somam-se a essas, contatos com representantes de organizações e diálogos com pesquisadores.
A primeira dimensão trata dos extremos climáticos, com indicadores voltados a examinar os dados sobre diferentes tipos de clima presentes nas diversas regiões do Brasil e suas implicações na insegurança alimentar e insegurança hídrica, e consequentemente na nutrição e saúde infantil. A segunda dimensão se refere aos sistemas alimentares. Esta dimensão aborda a complexidade dos sistemas alimentares e explora a sustentabilidade, eficiência e resiliência desses sistemas. Já a terceira dimensão se refere à IA, caracterizada pela falta de acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente e avaliada pela EBIA, definidos em 04 indicadores: segurança alimentar e insegurança alimentar leve, moderada e grave. A quarta dimensão trata da insegurança hídrica (IH), definida como dificuldades relacionadas à disponibilidade de água em quantidade e qualidade suficientes para o atendimento às necessidades humanas. Seguida da quinta dimensão com a abordagem das desigualdades sociais essenciais para o entendimento das inter relações com a IA e IH. Finalizando, a sexta dimensão se refere à saúde e nutrição da criança, com indicadores prontos a analisar o estado de saúde e nutrição de crianças brasileiras com menos de 5 anos de idade, considerando em especial a tripla carga de má nutrição (desnutrição, obesidade e carências nutricionais em uma mesma população). De forma complementar, foram selecionados ainda indicadores para caracterização do Brasil. Esta seção inclui dados demográficos, econômicos e sociais do Brasil, fornecendo uma visão abrangente do panorama nacional.
A equipe de pesquisadores estabeleceu a avaliação dos indicadores em duas etapas. A primeira refere-se à pertinência dos mesmos de acordo os objetivos do projeto, e esta contempla seis categorias e dez critérios, a saber: (1) Consistência ao modelo teórico do projeto FomeS, com os critérios relevância e coerência; (2) Validade, com os critérios especificidade e sensibilidade; (3) Confiabilidade, com os critérios precisão e inteligibilidade; (4) Desagregação, com o critério granulometria; (5) Historicidade, com os critérios capacidade de monitoramento e periodicidade; e, por fim, (6) Factibilidade, com o critério acessibilidade.
Qualidade de dados (Data quality) – A segunda etapa compete a validação do conjunto de dados dos indicadores selecionados na primeira etapa, considerando critérios relacionados com a sensibilidade aos diferentes contextos brasileiros, nível de desagregação e capilaridade no território brasileiro, historicidade, adequação internacional, confiabilidade e mensurabilidade.
As análises dos dados coletados serão expostas por meio de gráficos do território nacional que apontam a correlação entre os desfechos e as variáveis de exposição climática nos anos avaliados, por meio de mapas e gráficos de dispersão, como também as associações entre a IA, IH e a saúde e nutrição de crianças com os indicadores climáticos e, serão testadas a partir de modelos de regressão e apresentadas no dashboard, neste momento em fase de construção. O projeto atende aos critérios éticos conforme as resoluções do Conselho Nacional de Saúde (Resolução n. 466/12 e n. 510/16) para pesquisas envolvendo exclusivamente dados de domínio público, não envolvendo, portanto, quaisquer variáveis/informações que possam identificar os indivíduos.
Considerações finais
O projeto FomeS disporá de uma robusta base de dados apta para subsidiar pesquisadores e demais atores interessados no estudo das alterações climáticas e suas relações com a segurança alimentar e nutricional e a saúde das crianças. Além disso, a entrega do dashboard – painel de resultados – contribuirá com recomendações para políticas públicas e poderá fomentar gestores na tomada de decisão, na direção de propor e implementar programas e ações setoriais e intersetoriais, a partir do reconhecimento das necessidades e implicações da mudança climática na alimentação e saúde.
Espera-se portanto, a ampla disseminação dos resultados deste trabalho no intuito de avançar no debate integrado quanto às mudanças climáticas e seus desfechos na fome e na escassez hídrica no contexto da saúde pública. A exploração detalhada dos dados poderá ainda contribuir para a construção de políticas, ações e estratégias voltadas para a promoção da saúde e bem-estar das futuras gerações brasileiras em perspectiva socioambiental.
referências bibliográficas
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